Para quem vender o sítio de dona Ana Primavesi?
Para achar a foto acima, tive de abrir um velho arquivo de aço, movimentar várias pastas, em três gavetas, até encontrar um bloco de plásticos próprios para acondicionar slides. São duas fotos bem parecidas (achei que era uma só) e já estão para completar a maioridade plena, 21 anos: foram feitas pelo fotógrafo Kim-Ir-Sen, em 11 de abril de 1991, quando eu era repórter “foca” no “Guia Rural”, da Editora Abril, revista deliciosa de trabalhar, mas que infelizmente não durou nem dez anos. Estamos ali, na foto, eu, repórter iniciante, praticamente recém-formada, prestes a completar 25 anos. E dona Ana Primavesi, então com 71 anos, vigorosa, andar decidido, animada e senhora de um sítio muito especial em Itaí, município a 300 quilômetros de São Paulo, cujo acesso se dá pela Rodovia Castelo Branco, às margens da Represa de Jurumirim.
Nunca mais voltei lá. A única lembrança que tenho do sítio é justamente esta: as fotografias. Nem me lembro ao certo que reportagem havia sido escalada para fazer naquele dia com dona Ana Primavesi, que também era, aliás, colunista da revista. Mas lembro de ter recebido uma grande aula sobre as conexões da natureza, das plantas com o solo, com o meio ambiente, com a vida. E de ter reafirmado minha certeza de que seria eternamente ligada a esses assuntos.
Hoje, aos 92 anos, dona Ana Primavesi me pergunta se eu me lembro do sítio. Respondo a ela que não, só lembro da boa energia que trouxe daquela viagem. E ela me fala, com voz baixa e pausada, que a área é como um oásis rodeado do pasto das outras propriedades. Com os bons tratos que deu ao solo, eliminando terríveis voçorocas, e com o reflorestamento de algumas áreas, novas nascentes foram brotando ao longo dos anos. São cinco ao todo. “Basta cuidar bem do solo e do meio ambiente que a natureza responde”, lembro que ela me disse, em outra entrevista, há cerca de três anos, desta vez para o também extinto “Suplemento Agrícola”, do Estadão – que raios, será que veículos que cobrem a agricultura neste País nascem já com pena de morte decretada?
E, ainda naquela entrevista, arrematou: “Eu garanto que os cultivos orgânicos têm todas as condições de alimentar a humanidade. Era assim que o mundo se alimentava até a chegada da Revolução Verde. São tão produtivos quanto uma lavoura convencional e ainda preservam o solo. Um solo no qual a vida é preservada responde bem a qualquer cultivo.” Fico imaginando quantas vezes ela repetiu este mantra ao longo da sua vida e para que quantidade de gente. Resposta para as duas perguntas: infinitas e infinitas.
Dona Ana Primavesi, austríaca de nascimento mas com certeza uma cidadã do mundo, pelos seus ensinamentos e viagens aos cinco continentes para difundir a importância de preservação da vida do solo e dos cultivos orgânicos – em contraposição a todo o pacote tecnológico da Revolução Verde -, já não está mais morando no sítio. Resistiu por ali até 25 de janeiro deste ano, quando a família achou por bem trazê-la para São Paulo, no bairro do Campo Belo, onde mora sua filha, Carin. Uma casa ampla, com um grande quintal no fundo. Brinco com dona Ana Primavesi: “A senhora não vai resistir e logo vai tirar o gramado aí de trás para plantar um feijãozinho orgânico.” Ela sorri. E conta que, com sua saída do sítio de 96 hectares, por questões mais de idade do que de saúde, onde morou por 32 anos, todo o maquinário e o gado que mantinha ali já foram vendidos. Os piquetes e água para cada um deles, transportada morro acima com a energia limpa de uma roda d’água, não foram desfeitos. Uma lavoura de café ainda viceja, cuidada por um vizinho, e, na safra, atrai compradores da região, em busca de um café de altíssima qualidade. “Quem compra o café diz que a bebida tem um sabor especial”, arremata Carin, que nos acompanha na entrevista neste dia, na casa no Campo Belo. “Dizem que é melhor do que o café de terra roxa.”
Do sítio, além de saudade, dona Ana Primavesi trouxe também sua coleção de miniaturas de elefantes, ampliada a cada viagem à África, e uma respeitável biblioteca sobre agricultura orgânica, solos, agronomia e assuntos afins e afora. Todos os livros foram doados para a Associação de Agricultura Orgânica de São Paulo, que agora busca um espaço no Parque da Água Branca, na capital, para instalar a biblioteca. Carin não sabe dizer quantos livros foram doados pela mãe. Mas diz que dois caminhões cheios saíram de Itaí.
Assim como dona Ana evita entrar no assunto, que não lhe agrada especialmente, eu também pareço estar adiando o inevitável. Mas é isso. Vamos à questão: agora, o sítio da senhora que pode ser considerada a precursora do movimento orgânico no Brasil está à venda. A grande questão é: para quem vender um sítio tão precioso, de grande valor histórico e ambiental? Para quem vender uma propriedade que foi utilizada por dona Ana como laboratório vivo, para provar que a natureza, bem preservada, dá conta de garantir o sustento da humanidade? Para quem vender uma propriedade onde gerações de estudiosos e produtores tanto aprenderam sobre cultivo orgânico, solos e preservação ambiental? A família vê-se no direito de escolher um comprador para o sítio. Não vai vender para qualquer pessoa, que pode destruir todo esse patrimônio ambiental e agronômico.
Para tentar achar uma solução para a questão, nesta próxima sexta-feira, dia 2 de março, um grupo de pessoas ligadas ao movimento orgânico no País vai se reunir na casa de dona Ana Primavesi. “Várias cabeças pensam melhor do que uma”, diz dona Ana, reafirmando a vocação para a preservação da biodiversidade. Entre as soluções aventadas, tentar encontrar algum grande empresário com mentalidade preservacionista, que transforme a área em polo difusor de ecologia. Ou algum grande produtor orgânico, que mantenha a linha adotada por dona Ana nesses anos todos. Sugestões são bem-vindas. E podem ser enviadas para os comentários deste blog.
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